quarta-feira, 23 de março de 2016

AS CARTAS DE PAULO A SÊNECA/SÊNECA A PAULO



As supostas correspondências entre o filósofo Sêneca e o apóstolo Paulo de Tarso suscita interesse entre o cristianismo e a cultura clássica, particularmente daquele relacionado com o estoicismo e com Sêneca.
As lacunas existentes no que diz respeito ao tema, têm provocado à imaginação de cristãos e estudiosos ao longo dos séculos.
As fontes utilizadas são a versão para língua inglesa feita, em 1924, por M. R. James, medievalista da Universidade de Cambridge e a tradução, também para o Inglês, feita em 1938, por C. W. Barlowi em Roma.
A despeito das cartas serem consideradas apócrifas, as quatorze supostas cartas entre Sêneca e Paulo podem despertar, conforme mencionamos o interesse daqueles que se dedicam aos estudos do cristianismo primitivo.
Esses documentos são mais uma evidência da forte influência que a moral e a ética estoica exerceram sobre os primeiros autores cristãos. Essas cartas refletem uma conexão recíproca entre a fé professada pelos cristãos primitivos e os preceitos filosóficos da época, em particular o estoicismo. Quando se pensa em Sêneca e em Paulo de Tarso deve-se levar em conta sua comum identificação moral e ética, identificação implícita ou antecipada por Sêneca.
Como teria surgido a ideia da correspondência epistolar entre Paulo e o filósofo romano? Supostamente, devido à doutrina de Sêneca. Com efeito, há pontos similares entre Paulo (At 17) e Sêneca (v.g., Carta 90). O discurso do Apóstolo, no Areópago, e o esquema metafísico de Sêneca tinham por endereço um auditório e leitores de formação semelhante: filósofos estoicos, que criam na Providência, epicureus e ateus. (ULLMAN,1996, p.15).
Outro dado interessante é que pensadores cristãos da antiguidade tinham Sêneca em alta conta. Alguns até fizeram menção às cartas em seus escritos. Tais como: Urmeneta (1966), São Jerônimo (340 d.C. – 420 d.C.) não hesitou em situar a figura de Sêneca no Catalogus Sanctorum. Tertuliano, outro ilustre representante da Patrística, costumava chamá-lo de “Sêneca saepe noster” por considerá-lo “quase sempre cristão”.
Mesmo que haja um consenso entre os estudiosos de que tais cartas foram escritas por membros da igreja com vistas a legitimar a fé cristã, elas representam a expressão da influência que o estoicismo exerceu na estruturação do pensamento cristão. Essas cartas, voltadas ou não ao proselitismo, prestaram um serviço à Igreja como instituição. Por ironia, ou até mesmo por uma reciprocidade da “sorte”, “essas cartas, que apresentam Sêneca como cristão iniciando Nero no conhecimento da religião, mediante a leitura das cartas de São Paulo (...) contribuíram eficazmente para a conservação dos escritos genuínos de Sêneca” (ULLMANN, 1996, p.16).

Quem era Lúcio Aneu Sêneca (4 d.C – 64 d.C), filósofo, político e escritor, uma das personalidades de grande expressão em Roma no alvorecer da era Cristã, foi o maior representante do estoicismo imperial. Quando jovem, seu interesse pela filosofia começou em Pitágoras e ele se aproximou do filósofo Sotion. Posteriormente, recebendo os ensinamentos de Átalo, interessou-se pelo estoicismo. “Aos 25 anos, com a saúde debilitada, foi tratar-se em Alexandria, maior capital intelectual da época, e, enquanto se restabelecia, teve contato com importantes filósofos e com os arcanos das religiões orientais” (MAROTE, 2005, p.9).
Escolhido como preceptor do imperador Nero Cláudio César (37 D.c. – 68 D.c.), esteve à frente do império romano por quase dez anos. Acusado de conspiração, foi condenado ao suicídio pelo mesmo imperador a quem devotou grande parte de sua vida. O ecletismo resultante de tantas influências, e no qual prevalece o estoicismo, possivelmente desencadeou sua preocupação com questões éticas e morais, em especial, com o combate aos vícios.
Do outro lado tinha Paulo nascido em Tarso da Cilícia, cidade que lhe emprestou o nome. Seu nome original era Saulo (cerca de 3 a. c. – d.c. 66), considerado por alguns estudiosos da doutrina cristã uma das mais importantes figuras no processo de propagação do Cristianismo nascente. Ao contrário dos demais apóstolos, não conheceu Jesus pessoalmente. Homem culto teve sua primeira formação em sua cidade natal, como se infere pelo domínio da língua grega e pela retórica helenística que manifestava em seus escritos. Em sua juventude, estudou na escola rabínica de Jerusalém, presidida por Gamaliel, o mais célebre rabino da época. Nessa escola recebeu ampla formação farisaica e, possivelmente o título de “rabino”. Destacou-se, na esfera intelectual e prática a ponto de receber encargos diretos do sinédrio, ou tribunal judeu da sua cidade. “A sua mudança repentina do Judaísmo para o Cristianismo inquietou tanto os judeus como os cristãos, a ponto de os primeiros o perseguirem como apóstata e os segundos demorarem em aceitar” (SANCHEZ, 1996), o que não inviabilizou a sua ação missionária entre os povos que chamavam de pagãos.

1.    SÊNECA PARA PAULO, Saudações.

Eu creio Paulo, que você foi informado da conversa que tive ontem com meu amigo Lucílio sobre a Obra e outros assuntos. Certamente alguns de seus discípulos estavam comigo. Nós havíamos nos retirado para os Jardins de Sallust, onde, por nossa causa, os discípulos que mencionei, os quais estavam indo em outra direção, vieram e se juntaram a nós. Esteja certo de que ansiávamos por sua presença e eu também gostaria que você soubesse disso: sentimo-nos renovados pela leitura do seu livro, coletânea de inúmeras cartas de exortação dirigidas às cidades e capitais de províncias que apontavam para a vida moral por meio de admiráveis preceitos. Estes pensamentos, creio eu, não são expressos por você, e sim, através de você; mas certamente algumas vezes, por você e através de você. Eles expressam tanta leveza e brilho, permeados por um nobre sentimento que, em minha opinião, gerações de homens dificilmente seriam suficientes para estabelecê-los e aperfeiçoá-los. Eu lhe desejo boa saúde, Irmão.

2.    PAULO PARA SÊNECA, Saudações

Eu recebi sua carta ontem com extrema alegria e a ela teria respondido imediatamente se tivesse forças para fazê-lo. Digo-o por você saber quando, por quem, em que momento e para quem as coisas devem ser dadas e confiadas. Peço, pois, desculpas, e que você não pense que foi negligência de minha parte. Eu respeito a sua dignidade. Agora, onde quer que você esteja, peço que escreva que está contente com a minha carta. Eu ficaria feliz com a opinião de um homem da sua estatura: sei que você não diria isso de si mesmo. Um crítico, um filósofo, o professor de um grande príncipe; sei que não diria essas coisas a menos que fossem verdades. Espero que você esteja com saúde.

3.    SÊNECA PARA PAULO, Saudações

Eu estou compilando e organizando alguns escritos num volume. Eu também resolvi lê-los para César. Se a sorte me ajudar, que ele possa me ouvir com atenção. Talvez você também esteja lá. Caso contrário, eu marcarei um outro dia no qual possamos examinar juntos o trabalho. Realmente, eu não poderia apresentar este trabalho a ele sem primeiro saber da sua opinião, para que não haja risco de você achar que esteja sendo relegado. Adeus querido Paulo!

4.    PAULO PARA ANNAEUS SÊNECA, Saudações

Toda vez que ouço a leitura de suas cartas, penso que você está presente e me convenço de que está sempre entre nós. Destarte, em breve, quando você tiver partido, saberei que nos veremos no próximo trimestre. Eu lhe desejo boa saúde.

5.    SÊNECA PARA PAULO, Saudações

Nós estamos muito aflitos com sua retirada. Qual o problema? Que motivos o mantêm distante? Se for a cólera da Senhora (Pompaea)v por você ter abandonado o seu velho rito e se tornado um converso, ser-lhe-á dada a oportunidade de pedir a ela que considere que tal fato foi fruto de reflexão, e não uma atitude leviana.

6.    PAULO PARA SÊNECA E LUCÍLIO, Saudações

Sobre o tema que você abordou, eu não consigo me expressar com caneta e tinta, pois suas marcas mais tarde mostrarão o seu significado com clareza. Especialmente porque eu sei que entre vocês - especialmente entre você e os seus – há aqueles que me compreendem. Nós devemos respeitar a todos, e mais do que eles, nós estamos aptos a encontrar as causas da ofensa. Se formos pacientes com eles, nós certamente os superaremos em cada ponto, contanto que eles sejam homens que possam se arrepender de suas ações. Adeus.

7.    ANNAEUS SÊNECA PARA PAULO E THEOPHILUS, Saudações

Eu me considero feliz com a leitura das cartas que você mandou para os Gálatas, Coríntios e Aqueus. Desejo que possamos viver em harmonia de acordo com as exortações de suas cartas, uma vez que você demonstra ser inspirado pela graça divina; porque é o Espírito Santo que está em você e acima de você, quem expressa estes exaltados e adoráveis pensamentos. No entanto, peço que se acautele, para que o refinamento do estilo não esteja manifestando o desejo de glorificação do pensamento. Irmão, não escondo nada de você, e tendo isto em minha consciência, confesso que Augustus foi tocado por suas visões. Quando eu li para ele, revelando o poder que há em você, suas palavras foram estas: “Gostaria de saber como um homem não regularmente educado possa pensar assim”. Eu repliquei que os deuses muitas vezes falam por intermédio da boca dos simples, não daqueles que tentam enganosamente mostrar o que podem fazer através de seus conhecimentos; e quando mencionei o exemplo de Vatienius , o rústico, a quem dois homens apareceram no território de Reate, os quais posteriormente ele reconheceu como Castor e Polluxvi, ele pareceu completamente convencido. Adeus

8.    PAULO PARA SÊNECA, Saudações

Embora eu esteja convencido de que César, mesmo que eventualmente, erra, ele é um amante de nossas maravilhas. Acho que foi um grave erro da sua parte trazer ao conhecimento dele um assunto estranho à sua religião e educação. Sendo ele um adorador dos deuses das nações, eu não vejo por que você imaginou que ele poderia se interessar em conhecer esse assunto, a menos que você tenha feito isso por sentir uma profunda simpatia por mim. Eu lhe imploro que não repita isso no futuro. Você deve ser cauteloso em não ferir a simpatia da imperatriz por mim: Ainda que a raiva dela não nos fira se durar, nem nos faça bem se não durar, como uma rainha, não ficará zangada, como uma mulher ela ficará ofendida. Adeus!

9.    SÊNECA PARA PAULO, Saudações

Eu sei que você não está perturbado pelo conteúdo das minhas cartas em que menciono ter mostrado seus escritos a César; porém, muitas vezes as perturbações, também chamadas de ausência da razão, tiram do homem toda a capacidade de apreender e de ter uma boa conduta. Eu já não me surpreendo, pois tenho aprendido através de diversos exemplos. Vamos então agir diferentemente, e, se no passado algo foi feito de forma descuidada, perdoe-me. Eu lhe mandei um livro sobre a elegância de expressão (provisões de palavras). Adeus querido Paulo!

10. PARA SÊNECA, PAULO, Saudações

Sempre que lhe escrevo e não coloco meu nome após o seu (veja o título) eu cometo um delito contra os meus princípios. Porque devo, como declarei por diversas vezes, ser tudo para todos os homens e observar em você, a quem a lei romana concedeu a honra do senado, o fato de que se coloca no último lugar ao redigir uma carta, não fazendo - como eu - de uma forma confusa e vergonhosa. Adeus, mais dedicado dos mestres! Dado no dia 5 das calendas de julho, Nero a 4ª vez, e Messala, cônsul (A .D. 58).

11. SÊNECA PARA PAULO, Saudações

Saudações, meu querido Paulo. Você, tão grande homem, tão amado por Deus, seja, não unido, mas intimamente associado comigo e com o meu nome, e eu me sentirei completamente feliz. Você é o cume mais alto de todas as montanhas. Você não se regozijaria pelo fato de eu estar tão próximo a ponto de me tornar um segundo ego seu? Não pense, então, que você é indigno de ser nomeado primeiro no título das cartas. Você me faz acreditar que está me testando ao invés de brincar comigo, especialmente pelo fato de você saber que é um cidadão romano. Quanto à minha posição, preferiria que fosse a sua, e a sua preferia que fosse a minha. Adeus querido Paulo. Dado no dia 10 das calendas de abril. Aproniano e Capito cônsules (59 d.c.).

12. SÊNECA PARA PAULO, Saudações

Saudações, meu querido Paulo. Pensa que eu não estou triste e aflito por seu povo inocente ser frequentemente condenado a sofrer? E também, porque todos acham que você é tão insensível e tão propenso ao crime, que é o suposto autor de cada infortúnio da cidade? Vamos suportar isto pacientemente e contentar-nos com o que a sortevii nos traz, até que a suprema felicidade coloque fim aos nossos problemas. Nos tempos antigos era preciso suportar os macedônios, o filho de Felipe, e depois Dario, Dionísio, e em nossos dias temos que suportar Gaius César; para todos eles, seus desejos eram lei. O fogo devastou as planícies de Roma, mas se os homens humildes pudessem falar sem risco nesse tempo de trevas, tudo se tornaria evidente para todos. Cristãos e judeus são comumente executados como os autores do incêndio. Quem quer que seja o criminoso, cujo prazer é o de um açougueiro e que se esconde atrás de uma mentira, ele terá sua hora: e como o melhor homem foi sacrificado por muitos, assim ele, jurado de morte por todos, será queimado com o fogo. Cento e trinta e duas casas e quatro quarteirões foram queimados em seis dias, o sétimo trouxe uma pausa. Eu rezo para que você esteja bem, irmão. Dado em 5 das calendas de abril. Frugi e Bassus – cônsules (64 d.c.).

13. SÊNECA PARA PAULO, Saudações

Em muitas partes do seu trabalho estão incluídas parábolas e enigmas; portanto, a grande força e talento que foram dados a você deveriam ser embelezados, eu não digo com palavras elegantes, mas com certo cuidado. Você não deveria temer quando lhe lembro do que você frequentemente tem dito: que muitos que se preocupam com tais coisas corrompem o pensamento e tornam degenerada a profundidade do assunto. Eu queria que você me fizesse uma concessão e adaptasse o genial Latim, dando beleza às suas nobres palavras, e que a grande dádiva que tem sido concedida a você possa ser tratada com o devido valor. Adeus! Dada no dia antes de nones de junho; Leo e Sabinus cônsules

14. PAULO PARA SÊNECA, Saudações

Em suas meditações têm-lhe sido reveladas coisas que Deus tem concedido a poucos. Com confiança, portanto, eu semeio num campo já fértil uma semente mais prolífica; tal substância não está sujeita à corrupção, mas à palavra permanente, uma emanação de Deus que cresce para sempre. Essa sua sabedoria o tem edificado e você verá que ela é infalível para repelir as leis dos gentios e israelitas. Você pode se tornar um novo arauto, mostrando publicamente, com as virtudes da retórica, a irrepreensível sabedoria de Jesus Cristo. Tendo se aproximado dessa sabedoria, você reunirá condições de apresentá-la à monarquia profana, aos seus servos e aos seus amigos íntimos. No entanto, persuadi-los será uma tarefa difícil e áspera, porque muitos dificilmente se inclinarão às suas admoestações. Mesmo assim, se a palavra de Deus for instilada neles, será um ganho vital, produzindo um novo homemix incorruptível, e uma alma eterna que se dirigirá consequentemente, para Deus. Adeus, Sêneca, mui querido para mim. Dado nas calendas de agosto. Leo e Sabinus, cônsules As quatorze cartas, autênticas ou não, produto da imaginação ou uma estratégia de legitimação, ao menos ilustram a inegável valorização de Lúcio Aneu Sêneca por parte dos primeiros autores cristãos. Ao contrário de seus críticos, que na maioria dos casos se opunham ao seu pensamento e à sua prática política, os cristãos adotaram uma postura diferenciada e se voltaram para as suas ideias, suas sentenças e sua doutrina, orientação que gerou em alguns deles a ideia comum e aceita de um Sêneca pagão como precursor do cristianismo, e em outros, a de um Sêneca às vésperas da conversão ao cristianismo. Contudo, os legados são mútuos: se no século I d.c, Sêneca “emprestou” seu prestígio à fé cristã, provavelmente é a ela que ele deve a sua “sobrevivência” e notoriedade até os nossos dias.

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